Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
19 de Abril de 2024
    Adicione tópicos

    Novo CPC: quem deve provar o quê?

    * Texto inicialmente publicado no portal Jota

    há 8 anos

    O Código de Processo Civil, que vige entre nós há um mês, traz uma alteração significativa na dinâmica probatória, que impacta as partes, tanto na atuação processual, quanto nas suas relações extrajudiciais.

    Possibilitou-se ao juiz dinamizar[1] o ônus da prova (artigo 373), redistribuindo-o entre as partes[2], pelo que em todo processo as partes serão confrontadas com a pergunta que abre o presente texto.

    Mais que isso, pelo novo paradigma estabelecido pelo artigo 373, as partes, em suas relações privadas, deverão reorientar suas respectivas condutas, mormente probatórias, na medida em que potencialmente, em futuro processo, poderão ser chamadas a provar fatos relacionados à parte adversa.

    Em princípio, as partes apresentam no processo determinadas proposições de fato, hipóteses de descrição da realidade, sobre as quais seus esforços probatórios recaem. Ora, as proposições de fato normalmente são controversas, objeto de discussão pelas partes, pelo que não passam de esboços caricaturais.

    Contudo, com base em tais proposições é que a sorte da pretensão será decidida, via de regra pelo êxito da parte no comprovar suas assertivas, permitindo que o juiz aplique a norma ao caso concreto. Por aí já se depreende a importância da prova para o processo, na medida em que a demonstração das proposições fáticas, mediante a prova, condiciona a atividade jurisdicional[3].

    Assim, as provas oxigenam o processo. O processo não tem como prescindir do mecanismo estruturado para absorção das provas, a fim de que as proposições de fato sejam oxigenadas pela comprovação, permitindo a melhor prestação da tutela jurisdicional.

    Até por isso que boa parte da estruturação processual é construída considerando a (des) necessidade da produção probatória. O procedimento é ritualmente abreviado quando presente pretensão que não dependa da produção probatória (artigos 355 e 356). Exigências probatórias possibilitam a colheita de provas de forma antecipada, mediante procedimento específico (artigo 381 e seguintes). Ademais, a dita fase postulatória do processo, que serve também para depuração das proposições fáticas apresentadas pelas partes, é sequenciada por uma etapa destinada à preparação do início da instrução do processo, propriamente o seu saneamento e sua organização (artigo 357). Ainda se estrutura fase processual própria, na qual que os esforços são concentrados para a produção de provas (artigo 358 e seguintes).

    Portanto, claramente as provas, a necessidade de contar com elas, condicionam a disciplina processual, bem como a atividades das partes e do juiz no processo. Como reconhecido há mais de dois séculos pela doutrina processual, a arte do processo não é em substância senão a arte de produzir as provas[4].

    Ainda que assim o seja, no fim do dia, ao cabo do processo, por diversas razões, podemos ter um estado de hipóxia processual, pois o processo não restou oxigenado com as provas indispensáveis ao julgamento.

    Nada obstante, exige-se do juiz decisão, pelo que se estabelece o ônus como critério normativo para solução, exatamente na situação em que as provas faltem para o julgamento.

    O ônus da prova enucleia uma regra de juízo que visa estabelecer a resposta que será dada ao processo[5], na situação em que não aportaram provas a permitir o julgamento pelo juiz[6].

    Mas não só.

    Ainda que sejam certeiras as advertências relativamente à feição subjetiva do ônus da prova[7], indiscutivelmente que as partes têm presente o ônus da prova, inclusive fora do processo, nas suas diferentes relações e arranjos, especificamente quanto às provas que necessitam preconstituir para a eventualidade de uma futura, mesmo que remota, discussão.

    Assim, as partes tomam por base o ônus da prova na avaliação sobre as possibilidades de ingressarem com a demanda e demonstrarem efetivamente suas proposições de fato.

    Ainda, durante o processo, as partes, cônscias da regra do ônus da prova, definem os meios de prova que empregarão. O juiz também, em certa medida, tem em conta a oneração das partes ao avaliar a relevância das provas requeridas, em eventual qualificação das diligências como inúteis ou meramente protelatórias (artigo 370).

    Portanto, a regra do ônus da prova tem uma eficácia processual transcendente, não estando meramente confinada à fase final de julgamento, como regra de resolução processual. Como dito, com base nela, quando menos, as partes ordenam sua conduta processual, pautam sua atuação probatória.

    Pois bem, ainda que o Código tenha mantido como regra geral a distribuição estática do ônus da prova (artigo 373)[8], abriu-se a possibilidade ao juiz, em toda e qualquer demanda, de modular o ônus da prova (artigo 373, § 1o). Basicamente, a ideia da modulação do ônus da prova é estimular a prova por aqueles em melhores condições de comprovar[9].

    Transcreve-se para comprovação:

    “Art. 373. O ônus da prova incumbe:

    I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

    II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

    § 1oNos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.”.

    O dispositivo permite novo arranjo do ônus da prova por decisão do juiz (ope iudicis), afastando, episodicamente, a distribuição legal (ope legis), quando a produção de determinada prova para uma das partes se faça impossível, excessivamente difícil ou em virtude da maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário pela parte adversa.

    Como é intuitivo, em tais situações, a parte pode ter ampliado seu campo probatório para horizontes não antevistos, uma vez que a redistribuição do ônus da prova colocará sobre seus ombros potencial resultado negativo da ausência de demonstração de determinada proposição factual, que antes premia a parte adversa.

    Ainda que a redistribuição do ônus da prova não sirva para premiar o ócio, mas sim para premer contra omissão probatória, sua redistribuição (modulação) no processo afeta a parte onerada, impondo-lhe atuação processual no campo das provas não passível de ser divisada antes do processo.

    As partes que têm, pela própria tradição compartilhada pelo senso comum, a perspectiva da necessidade de comprovação de suas alegações ou acusações, são potencialmente surpreendidas durante o processo com a necessidade de comprovar questões relacionadas às acusações da parte contrária[10].

    É de se dar relevo, ainda, que tais decisões sobre a modulação do ônus da prova tendem a ser intensificadas. Isso porque, a modulação do ônus da prova ocorrerá na fase de saneamento e organização do processo. O artigo 357 estabelece um roteiro a ser observado pelo juiz em tal fase, sendo que a redistribuição do ônus da prova é tópico desse programa (roteiro) normativo, pelo que o ordenamento processual estimula seu exame, decisão explícita sobre o tema[11].

    Nesta medida, a existência da regra geral do ônus da prova perde em muito do seu caráter pedagógico pré-processual, como premonição às partes sobre potencial resultado da demanda.

    As partes e os respectivos advogados, frente às novas possibilidades de atribuição do ônus da prova, têm que imediatamente reorientar suas estratégias probatórias, inclusive pré-processuais, a fim de se preparar para eventualmente comprovarem não são só suas assertivas, mas também fatos relacionados à parte adversa.

    Logo, na dúvida sobre quem deve provar o que, impõe se precaver quanto a possibilidade de tudo ter que comprovar.


    [1] Não se trata bem de dinamização do ônus, pois, redistribuído que seja, o mesmo volta a ser estático em nova conformação. A ideia subjacente ao tema é a possibilidade do juiz modular o ônus da prova de acordo com a situação das partes frente às provas necessárias para instrução do processo, não ficando estritamente vinculado à distribuição apriorística estabelecida na cabeça do artigo 373

    [2] O tema restou difundido pela doutrina processual Argentina, identificando-se em JORGE PEYRANO o maior entusiasta, ainda que lá seja objeto de bastante discussão: "En tren de identificar la categoría de las 'cargas probatorias dinámicas', hemos visualizado - entre otras - como formando parte de la misma a aquélla según la cual se incumbe la carga probatoria a quien - por las circunstancias del caso y sin que interese que se desempeñe como actora o demandada - se encuentre en mejores condiciones para producir la probanza respectiva." (PEYRANO, Jorge W. Aspectos procesales de la responsabilidad profesional, in Las Responsabilidades Profesionales - Libro al Dr. Luis O. Andorno, coord. Augusto M. Morello e outros, La Plata: LEP, 1992, p. 263).

    [3] Obviamente, diz-se isso em reforçado exercício de simplificação, na medida em que a atividade jurisdicional, seja na reconstrução da norma jurídica, seja na sua interconexão com os fatos, é bem mais complexa. De toda forma, para fins do texto, o que nos interessa é chamar a atenção da prova em si como necessária para a prestação da tutela jurisdicional.

    [4] BENTHAM, Jeremías. Tratado de las pruebas judiciais: obra extraída de los manuscritos de M. Jeremías Bentham. Escrita em francês por Estevam Dumont. Traduzida ao castellano por C. M. V. Paris: Bossange Fréres, 1825. Tomo I, p. 4.

    [5] Como consignamos em obra a ser publicada: “Na regra do ônus da prova assume maior relevo sua característica como regra de julgamento (face objetiva). Como não é dado ao juiz jurar pela obscuridade da causa (sibi non liquere — julgamento non liquet), o ordenamento lhe dá a tábua de salvação na hipótese da dúvida. A expressão non liquet, suas iniciais N. L., era usada pelos juízes romanos, ao tempo da República, para se demitir do julgamento de questão sobre a qual não estavam suficientemente esclarecidos. Ao votarem, consignavam em pequenas tábuas que traziam tais siglas (N. L.), ou as letras A (absolvo) C (condeno). Atualmente, pelo inevitabilidade da prestação da tutela jurisdicional (artigo 5o, inciso XXXV, da Constituição), o juiz não pode pronunciar o non liquet. O dispositivo em comento objetiva exatamente afastar tal possibilidade, no que estabelece a diretriz a ser observada pelo magistrado quando presente dúvida insuperável sobre as proposições afirmadas. Presente o estado de incerteza, o conteúdo da decisão a ser prolatada é imposto pela ordem jurídica. Tal regra de julgamento possibilita o juízo afirmativo ou negativo sobre a pretensão, na situação de hipóxia probatória.” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; Dellore, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016).

    [6] “(...) é uma necessidade evidente que a lei tenha algum dispositivo acerca do que deve ser feito quando, entre duas partes e com referência a uma específica norma do direito, não for estabelecida a aplicabilidade ou não da pertinente ‘consequência jurídica’ (...)”. (MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P. 55)

    [7] Rejeita-se existência dessa feição subjetiva do ônus da prova com base na comunhão das provas no processo, a existência de poderes instrutórios do juiz e o julgamento com base na persuasão racional. Mesmo porque, a atividade probatória das partes só mediatamente tem reflexo no resultado do processo (MICHELI, Gian Antonio. La carga de la prueba. Traducida por Santiago Sentís Melendo. Bogotá: Editoral Temis, 1989. P. 96). Assim, em tal visão, o ônus subjetivo da prova só teria relevância prática, mais psicológica do que jurídica (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Julgamento e ônus da prova. Tema de direito processual. 2a Série. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 75), ou, ainda, seria característica própria de processos dominados pelo princípio dispositivo. Vale lembrar que PONTES DE MIRANDA, ainda que acentuando a face objetiva (MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil: tomo IV (arts. 282-443). 3. Ed. Rev. E aument. Atualização legislativa de Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1996. P. 270), não deixou de reconhecer que o ônus da prova principia antes de qualquer demanda, preexistindo a ela (MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil: tomo IV (arts. 282-443). 3. Ed. Rev. E aument. Atualização legislativa de Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1996. P. 254).

    [8] Ao autor compete a prova dos fatos constitutivos do seu direito, enquanto ao réu a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

    [9] BENTHAM já propugnava que o encargo da prova deveria recair sobre os ombros de quem pudesse realizá-la com menores inconvenientes (BENTHAM, op. Cit., Tomo III, p. 151)

    [10] É diferente a situação nas relações de consumo, de trabalho ou envolvendo responsabilidade profissional, nas quais já preponderavam regulamentações estabelecendo deveres de documentação, comprovação e etc., próprios e inerentes ao exercício da atividade comercial. Nessa medida, por exemplo, o impacto da inversão do ônus da prova no Código de Proteção e Defesa ao Consumidor na realidade foi menor do que será, imagina-se, a aplicação do artigo 373, § 1o.

    [11] Na nossa visão, seja a decisão que redistribui, seja aquela que rejeita o pedido de redistribuição do ônus da prova, são suscetíveis de ataque pelo agravo de instrumento. Isso porque, da conjugação do caput do artigo 1.015 com o inciso VIII, temos capitulada como hipótese de agravo as “decisões que versarem sobre” “redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1o”. Logo, tanto a decisão que defere, quanto que indefere a modulação do ônus da prova, versam efetivamente sobre o tema da redistribuição. Sobre o tema, vide também GAJARDONI, Fernando da Fonseca; Dellore, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016.

    • Sobre o autorAdvogado
    • Publicações97
    • Seguidores116
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações123
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/novo-cpc-quem-deve-provar-o-que/367781179

    Informações relacionadas

    Érico Olivieri, Advogado
    Modeloshá 5 anos

    [Modelo] Petição de especificação de provas

    Petição Inicial - TJSP - Ação Revogação do Mandato - Cumprimento de Sentença

    Petição Inicial - TJPR - Ação Superada a Pertinência e Adequação do Agravo, Cumpre Destacar a Tempestividade da Interposição Drecurso - Agravo de Instrumento - de Participacoes, Rezende Participacoes, RFV Gestao Empresarial e Agropecuária Candyba

    Consultor Jurídico
    Notíciashá 10 anos

    Teoria da dissonância cognitiva ajuda a compreender imparcialidade do juiz

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)